O Preço da Fé: Quando a religião vira negócio
André Charone
Nos últimos anos, a fé encontrou um novo altar: as redes sociais. De cultos ao vivo no Instagram a pregações no YouTube monetizadas com superchats e “pix profético”, o ambiente religioso brasileiro tem sido redesenhado por influenciadores espirituais, muitos deles autointitulados “apóstolos”, “profetas” e “missionários mirins”. O que antes se restringe ao púlpito agora chega com filtros, hashtags e campanhas de arrecadação.
Essa nova onda de evangelização digital, embora conecte multidões e ofereça conforto a muitos, também escancara uma realidade inquietante: a monetização da fé e os valores milionários por trás de alguns ministérios online.
A aparência do Missionário Mirim Miguel
Um dos casos mais emblemáticos é o de Miguel Oliveira , o “missionário mirim” de 14 anos. Com mais de um milhão de seguidores, Miguel realizou cultos e eventos com entradas que variavam entre R$ 50 a R$ 100, e recebeu doações generosas de sua fidelidade, em muitos casos motivadas por promessas de cura, libertação e “unção financeira”. Estima-se que suas aparições rendem até R$ 30 mil por culto .
A recente decisão do Conselho Tutelar de impedir que Miguel pregue, viaje ou use redes sociais por tempo indeterminado gerou comoção entre seguidores e um necessário debate público: até que ponto é legítimo essa forma de atuação religiosa? E quem está, de fato, se beneficiando financeiramente com tudo isso?
A fé como modelo de negócios
Para o consultor financeiro, contador e mestre em negócios internacionais André Charone , esse aspecto revela um lado obscuro da fusão entre estratégias de marketing digital e elementos religiosos. “Não há problema em utilizar ferramentas modernas para propagar mensagens espirituais, especialmente para ajudar e confortar as pessoas. O problema surge quando essas ferramentas se tornam apenas meios de enriquecimento pessoal, sem transparência, prestação de contas ou qualquer controle institucional”, alerta.
Segundo levantamento do Ministério da Fazenda, somente entre 2020 e 2023, mais de R$ 2,4 bilhões foram movimentados por instituições religiosas cadastradas como isentas , muitas delas ligadas a líderes com forte atuação online. Em grande parte dos casos, o controle sobre esses recursos é mínimo, e muitos dos doadores não têm a menor ideia de como esse dinheiro está sendo usado.
“Em qualquer empresa de grande porte, há exigências de previsões contábeis, compliance e auditorias. No mundo religioso, por falta de regulação ou conivência institucional, muitos líderes manejam milhões com total autonomia. A fé, infelizmente, virou uma das fontes mais lucrativas e menos fiscalizadas do país”, reforça Charone.
A lacuna fiscal e a blindagem jurídica
O Brasil é um dos países mais permissivos do mundo quando o assunto é controle fiscal sobre organizações religiosas . A imunidade tributária, embora constitucionalmente garantida, transformou-se em terreno fértil para abusos, especialmente em um cenário no qual as modernas passaram a ser também marcas, empresas de mídia e plataformas de arrecadação em massa.
Nessas igrejas e templos são obrigados a manter contabilidade regular e demonstrar que suas receitas estão sendo destinadas às suas atividades essenciais, como cultos, assistência social, manutenção de instalações e promoção da fé. Essa exigência está expressa no artigo 14 do Código Tributário Nacional, que trata das condições para manutenção da imunidade.
Contudo, na prática, essa regra é amplamente ignorada, especialmente por microigrejas, projetos familiares e ministérios digitais . “A Receita não tem estrutura para fiscalizar todas as roupas. E a maioria só apresenta algum tipo de contabilidade quando precisa emitir uma certidão negativa ou captar recurso público”, afirma André Charone.
Segundo o especialista, a displicência contábil dentro do universo religioso é mais comum do que se imagina . “É possível que um templo que arrecade R$ 500 mil por mês não tenha sequer pensado um saldo mensal ou prestação pública de contas. Em muitos casos, o dízimo entra no envelope e vai direto para o bolso do líder”, alerta.
O perigo da fé sem limites
É preciso destacar que fé e religião são fundamentais para milhões de brasileiros , oferecendo apoio espiritual e sentido de comunidade. A crítica aqui não é à religiosidade em si, mas à forma como ela tem sido instrumentalizada para ganhos questionáveis.
“Todas as religiões merecem respeito e as lojas possuem um papel social importante. No entanto, quando o altar vira palco e a mensagem vira produto, o risco de manipulação é altíssimo. As pessoas não compram apenas um livro ou um ingresso, elas compram esperança. E explorar isso sem ética é inaceitável”, conclui André Charone.
Entre o Sagrado e o Lucrativo
Diante de um cenário onde líderes mirins e influenciadores movimentam cifras dignas de celebridades e pastores acumulam patrimônios milionários enquanto pedem “pix da fé”, a sociedade precisa urgentemente debater os limites éticos, fiscais e legais de atuação . Fé não deveria ter preço, e muito menos virar moeda de troca entre carisma e enriquecimento.
A espiritualidade pode (e deve) caminhar com a tecnologia, mas não pode se transformar em um negócio imune à responsabilidade.
André Charone é contador, professor universitário, Mestre em Negócios Internacionais pela Must University (Flórida-EUA), possui MBA em Gestão Financeira, Controladoria e Auditoria pela FGV (São Paulo – Brasil) e certificação internacional pela Universidade de Harvard (Massachusetts-EUA) e Disney Institute (Flórida-EUA). É sócio do escritório Belconta – Belém Contabilidade e do Portal Neo Ensino, autor de livros e bolsas de artigos na área contábil, empresarial e educacional. André lançou recentemente o livro ‘A Verdade Sobre o Dinheiro: Lições de Finanças para o Seu Dia a Dia’, um guia prático e acessível para quem deseja alcançar a estabilidade financeira sem fórmulas mágicas ou promessas de enriquecimento fácil.
O livro está disponível em versão física pela Amazon e versão digital pelo Google Play.
Versão Física (Amazon): https://www.amazon.com.br/dp/6501162408/ref=sr_1_2?m=A2S15SF5QO6JFU
Versão Digital (Google Play): https://play.google.com/store/books/details?id=2y4mEQAAQBAJ
Instagram: @andrecharone